quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

John e Shilloh: barreiras de gênero




Se você achava que seria a Kim Kardashian quem quebraria a internet, se enganou: toda vez que a filha de Angelina Jolie aparece nas câmeras, é todo um rebuliço. 

O motivo é simples: trata-se de uma menina que não gosta de se vestir da forma convencional para meninas e que, de algum tempo pra cá, prefere ser chamada de John. Antes de mais nada, é incrível ver a compreensão e apoio de Angelina e Brad a como a criança quer se vestir ou ser chamada. Esse deve ser um exemplo para os pais mundo afora, inclusive conhecidos meus, que agridem uma criança de apenas dois anos por gostar de batom. 

O que a posição da criança e dos pais para o mundo e o choque da sociedade nos diz é que as barreiras de gênero vão muito bem, obrigada. Tão bem que pessoas de fora da família já decidiram que a criança é trans (ou seja, foi designada como menina ao nascer, por ter vagina, mas se identifica como homem), algo que com certeza não é definido por um nome e umas peças de roupa, em especial quando se é tão jovem. Mas não é esse meu questionamento: trata-se de uma questão pessoal de John, ou Shilloh, ou o nome que a criança preferir. Trata-se de uma decisão a ser tomada por ela quando o mundo a sua volta fizer realmente sentido. 

Antes de qualquer coisa, é importante voltar à princípios básicos do feminismo, que infelizmente a gente se esquece fácil: 

Existe uma divisão entre homens e mulheres em sociedades patriarcais. Essa divisão não só separa um do outro, como coloca os homens em cima. Nós somos suas subordinadas, esposas, mães cuidadoras: lavamos suas roupas, cuidamos de seus filhos, limpamos sua casa. O problema não está em lavar, limpar e cuidar, mas sim fazer isso para homens sem sequer haver reconhecimento. Sem falar na limitação: seu lugar é um vestido rosa lavando a louça ou numa área de trabalho "feminina" como a medicina ou educação. Você tem que ser linda, mas não demais. Você tem que ser muitas, muitas coisas mesmo, em especial no que diz respeito a sua aparência e sexualidade. Quando se é mulher, você tem um lugar muito limitado para ocupar no mundo. 

Punk rock não é coisa de mulher, nem calça militar, nem cabelo curto, nem esse cachorrão

E é aí que entra a controvérsia da filha da Angelina Jolie. É uma criança que nasceu menina, que tem não só a família e a sociedade esperando um papel de menina dela: existem holofotes que esperam que ela apareça em público de vestido rosa ou fazendo o estilo "mini-adulta" que tem surgido por aí. Ao invés disso, a criança aparece de terno. 

Provavelmente a maior vantagem dos ternos são os bolsos.


E mulher não pode usar terno? 
Janis Ian já estava quebrando esse estereótipo no Meninas Malvadas, em 2004: 

Me possua, Janis.

Pra muita gente, ser homem ou mulher tem a ver com a roupa que você usa ou os objetos que gosta de ter por perto. Por isso se assustam quando veem uma criança menina brincando de carrinho ou correndo sem camisa na rua. Se assustam ainda mais quando é um menino se divertindo com bonecas ou querendo passar maquiagem: às mulheres, o cuidado, aos homens, explorar o mundo. 

A reação da mídia e dos fãs à roupa e escolha de nome de Shilloh choca porque, ao mesmo tempo em que associam ser mulher à vagina, também associam a várias coisas: vestidomaquiagemcuidadorosaboneca. Já a reação de alguns núcleos feministas à uma criança que escolheu um novo nome e usa terno é algo que ME choca. Surgiram muitos dedos apontados para a criança, dizendo que ela é trans! Shilloh tem 8 anos. 

Tudo o que Shilloh fez foi adotar um estilo que a agradava, por n motivos que ela mesma deve saber. Mais agradável aos olhos? Mais confortável? Vontade de ficar vestida igual a um homem específico? Nós não vamos saber tão cedo.

Dizer que Shilloh é trans por isso é dizer que ser mulher é usar vestido e ser homem é usar calças. E nós estamos em 2014, anos e anos depois da primeira onda feminista.

Como é fácil esquecer tudo que aprendemos lá atrás! Como é fácil esquecer o quanto lutamos pelo direito de sermos mulheres e podermos fazer o que quisermos, vestirmos a roupa que quisermos sem sermos rotuladas por isso. Shilloh é uma garota que já recebeu vários rótulos: trans, tomboy, lésbica, machinho. Não evoluímos nada, pelo visto. Era para Shilloh ser só mais uma garota sendo ela mesma, explorando diferentes estilos e tendo uma infância legal. 

Quanto a ela preferir ser chamada de John, eu não pularia diretamente para a conclusão de que se trata de uma criança transexual. Eu penso que Shilloh é uma garota tão inteligente que já notou que John pode ser quem ela quer ser, enquanto Shilloh tem expectativas de menina. 

Ela já percebeu que como John, ela pode ser quem ela quer, e como Shilloh não. É uma lógica simples e que uma criança poderia fazer. Se ser menina é ter que usar vestido e fazer coisas que ela não quer, então agora é John, que pode fazer isso tudo sem ser julgado.

Eu não acho isso saudável. Acho sintomático, e acho que a barreira de gênero, hoje em dia, está fortíssima. Nós mulheres não podemos apenas ser, despreocupadamente, nós mesmas. Nos deram mais um monte de moldes para seguir.

Meu objetivo não é estipular se a criança é ou não trans, ou as políticas envolvidas nisso. Meu objetivo deveria ser claro a todas as feministas: definir uma criança como homem ou mulher com base no que ela gosta de vestir e brincar é machismo puro. É um retrocesso em décadas de luta feminista pela libertação das mulheres dos papéis que nos foram impostos. É afirmar que, sim, Amélia que era mulher de verdade, que fazia tudo em casa e ainda estava lindíssima para o marido. É afirmar que ser mulher é um papel muito bem definido.

Edit (20/12):
Uma amiga me apontou coisas importantíssimas, então segue a fala dela:

"O Brad Pitt falou em entrevista que ela, na época com 2 anos (!!), queria ser chamada de John ou Peter por causa do Peter Pan. Não era a identidade de gênero dela. http://goo.gl/q2Sjtd
Aí nessa reportagem tem tbm uma fala da Jolie falando que a pira dela é ser que nem os irmãos e boa, nada pra ficar sendo interpretado.
Aí com 6 anos ela queria ser chamada de Ben e depois de Shax (pra combinar com os nomes dos irmãos) http://goo.gl/W19SLc
Enfim, em 2010 a Jolie já tava pedindo pra não julgar a Shiloh pelas roupas masculinas (http://goo.gl/HrR475)."

3 comentários:

  1. Obrigada pelas importantes reflexões.

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  2. Concordo tanto com esse texto, que vou compartilhar com qualquer pessoa que vir afirmar algo antes mesmo que a familia se pronuncie.

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