quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O álcool como forma de dominação masculina



Esta semana um dos highlights feministas foi a nova campanha da Skol (eta cerveja ruim, diga-se de passagem). Muita discussão pertinente foi levantada e a mais óbvia com certeza foi a da cultura de estupro. 
Resistência e intervenção feminista. Leia o post da Pri

Não acho que se trata somente de cultura de estupro, cruamente falando. Como a Pri Ferrari disse, a indução a perda de controle é algo perigoso. A Skol, como outras marcas de cerveja brasileiras, investem no corpo feminino, na voluptuosidade e na pegação que costuma acontecer quando as pessoas bebem. E aí mora um perigo grande, porque nem sempre quando se bebe, você não é capaz de consentir (apesar de haver discordâncias no meio feminista sobre isso). No entanto, a existência de consentimento não significa que a mulher não esteja diante de situações violentas ou misóginas.

Comecei a pensar sobre isso depois de comentar num grupo de mulheres sobre consumo excessivo de álcool e uma mulher colocou um ponto incrível: mulher beber hoje em dia é legalzão, mas até pouco tempo atrás, não era assim. Era vergonhoso, sujo, e muita gente ainda carrega isso. E aí a gente se rebela, obviamente, adentrando os espaços que antes eram exclusividade masculina: bares, boates, open bar. Apostamos com eles quem vira mais doses e copos cheios de cerveja e poucas coisas soam mais girl power que uma mulher que bebe melhor que um cara. Fazemos isso sem pensar no efeito que isso tem sobre nós mesmas e no quão vulneráveis ficamos num ambiente misógino e potencialmente hostil para mulheres.

As músicas de hoje, as que fazem sucesso, são muito sobre uma mulher que está louca, bebeu demais, tá descendo até o chão, dançando com todos, tá provocante. A mulher que bebe, atualmente, é descolada, divertida. É claro que se você passar vergonha, desmaiar, vomitar ou sofrer algum abuso, você que não deveria estar vulnerável no meio de um monte de homem bêbado. A sociedade patriarcal passa de liberal para conservadora muito fácil quando o corpo das mulheres deixa de ser parque de diversões e se torna fonte de problema.

O negócio é que álcool não é um problema apenas em situação de abuso e estupro. O álcool é problema quando a gente esquece o "não" em casa e consente demais, a ponto de achar que encher a cara, ficar vulnerável, ficar com todos, é algo muito tranquilo de se fazer. Spoiler: não é. Não numa sociedade patriarcal que, atualmente, prefere mulheres bêbadas porque elas são mais "soltinhas". 

Não é nem que as mulheres esqueçam o "não" em casa. Ele caiu dentro do terceiro mega-latão de Brahma, e aí no dia seguinte você não é mais a garota legal, sensual com sua caipirinha. Você é uma puta nojenta que bebe demais e não sabe se comportar. Você beijou pessoas que nem queria realmente beijar: você consentiu, mas não queria. Você foi, tentando se divertir, instrumento da diversão masculina.

É importante dizer que isso não é culpa das mulheres que bebem. Eu inclusa.  

Campanha do Ministério da Justiça que foi retirada do ar. Por motivos óbvios. Fácil demais culpar as mulheres.

A culpa é de uma cultura que glamoriza mulheres bêbadas não porque elas estão se divertindo e dançando (como teriam vergonha de fazê-lo naturalmente), mas sim porque elas estão vulneráveis e propensas a dizer sim. Me dá nojo pensar que a nossa diversão é vista como oportunidade para os homens: nossa conquista - a de poder frequentar espaços com álcool e realmente beber, como uma escolha nossa - é transformada em mais uma ocasião em que somos presas masculinas. Nos incentivam a beber, mas as consequências disso são somente nossas. De novo, espaços masculinos nos são permitidos com consequências terríveis. 

Dizer essas coisas pode parecer discurso conservador, aquilo de "confundir liberdade com libertinagem". Mas deixo apenas a reflexão para vocês: porque uma sociedade machista como a nossa gosta tanto de mulheres bêbadas? É sempre porque elas vão desmaiar e serem estupradas? 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

O Dragão e Hannibal Lecter


Ano retrasado estreou uma nova série do aclamado produtor Bryan Fuller (Pushing Daisies), e, para a alegria dos fãs do famoso canibal Dr. Hannibal Lecter, a produção seria baseada no livro Dragão Vermelho, de Thomas Harris.

O livro ganhara uma adaptação em 2002, estrelada por Anthony Hopkins e Edward Norton. O que poucos sabem é que Dragão Vermelho é um remake de Manhunt (1986), também baseado na obra de Thomas Harris. Muitos diriam que Lecter já teve seus dias de glória e que, definitivamente, Red Dragon havia sido espremido pela TV e cinema até o fim. 

Como estiveram errados! A série, com as brilhantes atuações de Hugh Dancy (Graham) e Mads Mikkelsen (Hannibal), fotografia e filmagem impecáveis, permaneceu no ar e ganhou sua segunda temporada, a contragosto dos mais conservadores e sensibilizados pelas cenas chocantes e temas carregados de terror psicológico. Depois do fim das duas temporadas e assistir, novamente, o filme de 2002, resolvi me dedicar à leitura da obra de Thomas Harris.

No ano passado já havia lido Silêncio dos Inocentes, obra que, cronologicamente, vem depois de Dragão Vermelho e conta com a participação da recruta do FBI Clarice Starling, com quem Lecter desenvolve uma relação de respeito e admiração. Gostei muito do livro, que aborda questões como a discriminação sofrida por Clarice por cer uma das poucas agentes mulheres dentro do FBI. Minha reação com Dragão Vermelho foi de no mínimo decepção.


Foie Gras feito por Hannival Lecter na série.
Até a metade da história, nos encontramos enrolados em mil burocracias e pouca emoção em torno do assassino (conhecido como Dentuço ou Tooth Fairy) e a caçada investida por Will Graham. Aposentado do trabalho no FBI, Will está casado e conserta motores de barcos na califórnia, tentando se afastar do mundo do crime. Seu trauma envolve ter descoberto a natureza assassina de Hannibal Lecter, o que lhe custou um enorme corte no ventre e bastante tempo em coma. Dragão Vermelho definitivamente não é um livro para aqueles que querem ver cenas com Lecter: este só aparece cerca de três vezes na história, que foca muito mais em Dolarhyde, o Dentuço, e Will Graham. É traçado um paralelo da loucura e psicopatia do assassino e a grande empatia e envolvimento com o caso de Will Graham, aspecto que foi pouco abordado no filme estrelado por Norton. 

Por fim, depois da primeira metade da obra, entramos mais fundo na mente de Dolarhyde e nos deparamos com sua face cruel e problemática, a história de um garoto com o rosto deformado e uma infância abusiva. A clássica cena do confronto entre o jornalista Freddie Lounds e Dolarhyde como o Dragão foi reproduzida exatamente da mesma forma no filme, e, muito provavelmente, é a melhor parte tanto da obra cinematográfica quanto do livro.

Até o momento atual da série  não há Dragão Vermelho (na terceira temporada conhecemos não só o Dentuço como também Molly, a esposa de Will), e sim vários assassinos e a amizade destrutiva de Hannibal e Will. Durante a primeira temporada, Will é enganado e manipulado por Lecter, que se aproveita do seu distúrbio de empatia e leva o agente especial à beira da loucura, experienciando alucinações, sonambulismo, perda de memória e lapsos de tempo. Na obra literária, fica claro o caráter manipulativo do Dr. Lecter, que, mesmo depois de preso, insiste em manter contato com Will através de cartas. Will Graham busca entender os assassinos brutais e calculistas com que o FBI tem de lidar: esta é uma tarefa perigosa que explora os limites da mente criativa de Will, tornando-o capaz de mesclar imaginação e realidade. O papel de Hannibal, na série, é permitir que Will faça seu trabalho sem enlouquecer. No entanto, é apenas o expectador quem está ciente da manipulação curiosa de Hannibal, enquanto este recebe a confiança íntegra não só dos membros do FBI, mas também da parte de Will Graham.

Hannibal cheirando Will.
Aos poucos, Will fica fora de controle e Hannibal utiliza isso como uma isca, mexendo seus pauzinhos para incriminá-lo por seus delitos de canibalismo. Will é preso e, na segunda temporada, vemos o ódio do protagonista crescer pelo doutor à medida que o isolamento de sua figura influente ganha poder: Will se lembra, aos poucos, as técnicas de manipulação e influência que Lecter utilizara e, oviamente, ninguém acredita nele. 

Fica claro que enquanto o livro e filme Dragão Vermelho se dedicam ao caráter criminal da trama, Bryan Fuller abre o leque de possibilidade e trabalha com as entrelinhas, explorando a psicologia e psiquiatria criminal. Muitas vezes, a brutalidade de Lecter fica clara nos filmes a seu respeito, mas pouco é dito sobre sua inteligência aguçada e sua crueldade na manipulação das pessoas a seu redor apenas por diversão. 

Fuller parece ter-se inspirado nas cartas de Hannibal a Will na obra literária ao desenvolver o personagem em sua produção para a TV: Hannibal cresce de um homem decadente atrás das grades (porém inteligente) para uma figura influente, elegante e poderosa. Na série, Hannibal se mostra muito mais ameaçador mesmo quando está inocentemente cortando batatas: seu poder não reside no canibalismo, mas sim na sua natureza cruel. Esta é uma informação crucial sobre o personagem que muitas vezes se perde nas outras produções.

Assim, embora Hannibal NBC tenha suas diferenças de roteiro, as similaridades com a obra literária é profunda, e os fãs que conhecem bem o legado de Lecter vão notar como trata-se de uma produção delicada e calculista, com detalhes destinados aos mais aguçados espectadores. Enquanto os filmes se dedicam ao gore e à caçada (Manhunt!), Hannibal NBC explora o difícil de capturar na câmera: a distorção da natureza humana.  

"Nada aqui é vegetariano"