quarta-feira, 30 de julho de 2014

Oito anos (trigger warning)

Fonte: http://shakysmiles.tumblr.com/


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Mais uma tarde sozinha em casa. Ela era uma garota solitária e tinha muitos dias assim.  Uma das memórias mais vívidas daquele tempo era o piso frio do banheiro sob seus joelhos, depois olhos vermelhos e inchados a encarando de volta no espelho, água gelada correndo por suas mãos na pia.

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As outras garotas da escola comiam coxinha às 9:30 da manhã, mas era ela quem era chamada de porca. Elas vestiam bermudas coladas para a aula de educação física. Um garoto a barrou na porta da sala dizendo que só as meninas bonitas poderiam entrar.

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Adorava tirar fotos, mas só do seu rosto, que era magro.

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Encontrara um garoto que também se sentia mal. Pouca gente se sentia mal naquela época, mas ela não entendia muito bem a graça que outras pessoas tinham em viver aos 15. Sentia-se suja, e, enquanto ele estava deitado na cama e trocavam beijos de boa noite, ela não merecia nada de bom. Era nojenta. "É sério, preciso ir ao banheiro". Embora ele não fosse muito diferente dela, o som o deixou chateado e ele se recusou a falar com ela até o dia seguinte, em que a fez prometer que não aconteceria de novo.

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Sua garganta doía e ela estava rouca. Era inverno, suas unhas eram grandes e a comida da época era sensacional. O refluxo gástrico estava ficando um pouco fora de controle, mas o namorado da época era compreensivo e talvez não se importasse muito com o cheiro do ácido.

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Ela duvidava que ainda estivesse sendo tão patética na altura do próximo aniversário, mas pesava-se seis vezes por dia.

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Eles se encontram na rua. Naquele dia, as roupas pareciam mais apertadas, mesmo que não estivessem de fato. Mãos de dedos finos e longos estendem uma caixinha colorida com o nome de uma cupcakeria. Os olhos dele brilham com a expectativa pelo agradeimento dela, a alegria de quem recebe um presente. Ela começa a chorar.

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Ela conhece banheiros, não lugares. O único lugar que conhece por paredes, pessoas e sons, é a universidade. Todo o resto são privadas, descargas, pias e espelhos sujos.

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Faltam 15kg, e ela não consegue colocá-los para fora.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Resenha: Wintergirls





Esta resenha contém informações que podem engatilhar sentimentos ruins em pessoas que possuam problemas com auto-imagem e alimentação.

Wintergirls é um livro de Laurie Anderson (autora de Speak, livro que inspiraria o filme de mesmo nome, conhecido como O Silêncio de Melinda no Brasil) que trata de temas psiquiátricos e densos, como anorexia, bulimia e auto-mutilação.


A protagonista é Lia, uma garota de 18 anos que sofre de anorexia há anos, tendo sido internada numa clínica especializada duas vezes - o suficiente para aprender a driblar a vigilância do seu pai e madastra. Tudo foge de controle quando recebe a notícia de que sua ex melhor amiga e bulímica, Cassie, foi encontrada morta num quarto de hotel, depois ligar 33 vezes para Lia, deixando mensagens de voz chorosas e desesperadas. Este evento empurra Lia para os ciclos de auto-destruição, fazendo com que ela restrinja ainda mais sua alimentação e volte aos antigos hábitos de se cortar. 

Filha de pais separados e ausentes, Lia mora com seu pai, sua madastra e a meia-irmã, já que seu relacionamento com a mãe é frágil e tempestuoso. Encarregada de pesar a garota toda semana, a madastra Jennifer se esforça para não pressioná-la e ainda manter uma relação saudável. O pai de Lia parece não entender a dificuldade da filha em comer, enquanto Emma consegue ser doce e despertar o que há de melhor na nossa protagonista amarga. Digo que Lia é amarga porque a anorexia a desligou do mundo: apatia ou agressividade são as reações mais frequentes na vida dela e, após a morte de Cassie, a garota se fecha ainda mais dentro da proteção que acredita criar através da perda de peso. 

Lia decide ir até o hotel onde Cassie morreu e conhece Elijah, que trabalha no local e encontrou o corpo da garota. Eles constroem uma espécie de amizade sem que ele saiba que Lia é a tal amiga a quem Cassie ligava desesperadamente na noite em que morreu. Embora não se abra de fato para o rapaz, ele parece ser a pessoa mais próxima dela naquele momento: enquanto seus amigos lhe viram as costas por ter ignorado as ligações de Cassie e sua família não sabe lidar com seu transtorno alimentar, fica cada vez mais fácil para Lia se manter presa à anorexia. 

"O único número que seria suficiente seria zero. Zero quilos, zero vida, tamanho zero, zero duas vezes, zero ponto." - pequeno trecho de quando Lia finalmente percebe que o número não importa. 

Rapidamente, a saúde já fragilizada de Lia se deteriora e ela se encontra congelando de frio enquanto o inverno toma forma. Wintergirls são as garotas sempre presas nas tempestades dentro de si: Lia e Cassie, melhores amigas unidas também por uma aposta perigosa feita há anos: "eu vou ser mais magra que você". Embalada em culpa, lembranças e até mesmo visitas do fantasma de Cassie, Lia se exercita até a exaustão durante a madrugada, se alimentando o menos que pode. Uma das culpas da protagonista que me chamou a atenção foi quando Cassie quis abandonar os comportamentos bulímicos e Lia providenciou os telefones de clínicas e psiquiatras, dando o apoio técnico enquanto contava para a amiga quanto estava pesando, o quão pouco comera no dia e até mesmo trocando de roupa na frente de Cassie, exibindo os ossos salientes que a anorexia lhe configurara. Lia não poderia ser uma Wintergirl sozinha. Mais tarde, ela descobre que Cassie morrera enquanto vomitava: seu esôfago, corrompido pelo ácido de anos de compulsão alimentar e vômito forçado, se rompeu. Seu corpo entrou em choque e Cassie morreu sozinha debruçada numa privada, um jeito chocante (e real) de deixar este mundo. 

Wintergirls é um livro pesado. Embora a dor da protagonista seja expressa sob metáforas, seu desespero e apatia são claros. Leitores menos experientes e compreensivos sobre o tema de transtornos alimentares poderão sentir pouquíssima empatia por Lia e não entender qual o motivo da agressividade dela contra os pais, bem como se irritar com a relutância da garota em aceitar o tratamento. 

A ilusão de uma mente que passa fome de que "vazia = forte" pode parecer exagerada e dramática, mas aqueles mais atentos irão notar que Lia não está sozinha nesse tipo de padrão doentio. A modelo Kate Moss já disse publicamente que nada tem um gosto tão bom quanto ser magra. Nossa sociedade associa magreza à poder, disciplina, controle e superioridade. A competição entre garotas é comum e incentivada, principalmente no que diz respeito à perda de peso. Lia é todas as garotas que sofreram ou sofrem de anorexia levadas ao extremo, rebuscada pela morte da melhor amiga. A história de uma garota que pesa 45kg e se sente obesa não é rara, tanto que infelizmente Wintergirls tem sido usado como manual em sites da internet em que as garotas incentivam umas às outras a aderir dietas perigosas e sustentar padrões de pensamento relacionados à anorexia, bulimia e vigorexia. 

No entanto, o caráter poético da escrita pode ser exaustiva e, muitas vezes, me senti cansada de ouvir falar em leveza, ossos, fantasmas e etc. Inclusive, à medida em que Lia piora, o livro se torna mais "frágil", com uma escrita cada vez mais metafórica e etérea; essa é uma abordagem interessante, porque a própria garota descreve sua situação como se seu cérebro estivesse coberto por uma névoa. Outro recurso da escrita de Laurie Anderson que aparece em Wintergirls é o texto tachado. Os pensamentos da parte de Lia que quer sobreviver ("eu preciso comer") aparecem com um risco em cima e uma frase antagônica na frente ("eu odeio comer"), demonstrando o duelo que existe dentro da mente de alguém sofrendo com um transtorno alimentar. 

Wintergirls é o mais próximo de entrar na mente de uma anoréxica, desde o cru até a metáfora. Aqueles que buscam entender como a dor se transforma em medo de engordar podem encontrar a resposta nesse livro. 

Não recomendo a leitura a pessoas que sofram ou já tenham sofrido com transtornos alimentares, já que ele é bem gráfico ao descrever os hábitos de Lia e Cassie, bem como o valor calórico das refeições e peso das garotas. Eu mesma demorei a terminar as 148 páginas (no Kobo) porque a histórica engatilhou bastantes sentimentos ruins. Aqueles que gostam de temas como doenças psiquiátricas, família e amizade vão encontrar em Wintergirls um roteiro completo e intenso.

"Eu estou com raiva que matei meu cérebro de fome e sentei tremendo na minha cama à noite ao invés de dançar, ou ler poesia, ou tomar sorvete, ou beijar um garoto ou talvez uma garota com lábios macios e mãos fortes." 

Em tempo, no Brasil o livro foi traduzido para Garotas de Vidro. Me recuso a tratá-lo assim porque não é esse o sentido de "wintergirls".