sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Mulher tem que se cuidar

Art Must be Beautiful, Artist Must be Beautiful - Marina Abramovic, 1975 
Quando se é mulher, uma das coisas que mais se ouve é que a gente tem que se cuidar. Numa sociedade patriarcal como a nossa (ocidental, brasileira), isso quer dizer tudo, exceto de fato cuidar de si mesma.

Eu ouvi pouquíssimas vezes que eu tinha que me cuidar num sentido que não fosse estético: depilação, arrumar o cabelo, alisamento, maquiagem, perda de peso. Todas as inúmeras formas de moldar o corpo feminino e que hoje são tidas como escolha pessoal. O que passa despercebido é que algo que vem acompanhado da expressão "mulher tem que" simplesmente não pode ser uma escolha pessoal: investimentos estéticos, em especial as intervenções cirúrgicas, não são apenas escolhas individuais.

Existe uma pressão imensa para que mulheres invista em sua aparência. É engraçado pensar no quanto os homens se assustam quando colocamos no papel o quanto gastamos com nosso corpo (sempre bom lembrar que, no geral, mulheres ganham 33% a menos que homens, ao exercer a mesma função). Eles ficam confusos, se perguntam o motivo disso tudo, mas quando se deparam com uma mulher que não gosta de se depilar, ficam enojados e chocados.

Michelle Corvino
Em Beleza e Misoginia Sheila Jeffreys levanta uma questão interessante: todas essas intervenções (que no livro ela chama de "práticas culturais danosas") são formas de separar a mulher do homem. Isso quer dizer que para a mulher ocupar o mesmo espaço do homem, ela deve estar portando maquiagem, salto, e coisas do tipo, senão é "desleixada" e tem menos valor. Senão ela não está se cuidando. Por exemplo, no mercado de trabalho, em especial cargos mais altos, a mulher deve estar sempre bem vestida, maquiada e penteada, enquanto essas regras são bem mais frouxas para o homem: para ser respeitada, a mulher deve "se cuidar", enquanto o homem é respeitado per se.

Todas essas práticas envolvendo aparência são formas de colocar a mulher em seu devido lugar no patriarcado, um lembrete de que nosso avanço aconteceu, mas sob duras condições. Sheila compara a maquiagem aos véus utilizado pelas mulheres muçulmanas. Para frequentar o espaço público, a mulher muçulmana deve se cobrir e, caso ela não queira, ela não é socialmente respeitada. Muitas mulheres decidem utilizar o véu não porque gostam do véu em si, mas sim do respeito que recebem quando o portam. O mesmo acontece no ocidente com a maquiagem, por exemplo. As mulheres não escolhem se maquiar para o trabalho, ou usar salto, mas sabem que serão tratadas com mais seriedade e ser vistas como melhores profissionais se demonstrarem ser "mulheres que se cuidam".
"Feminist commentators on the readoption of the veil by women in Muslim countries in the late twentieth century have suggested that women feel safer and freer to engage in occupations and movement in the public world through covering up (Abu-Odeh, 1995). It could be that the wearing of makeup signifies that women have no automatic right to venture out in public in the west on equal grounds with men. Makeup, like the veil, ensures that they are masked and not having the effrontery to show themselves as the real and equal citizens that they should be in theory. Makeup and the veil may both reveal women’s lack of entitlement." - Beauty and Misogyny, Sheila Jeffreys
"Feministas que comentaram na readoção do véu por mulheres em países Muçulmanos no final do século XX, sugerem que mulheres se sentem mais seguras e livres para se engajarem em empregos e movimentos no espaço público se cobrindo. (Abu-Odeg, 1995). Usar maquiagem significaria que mulheres não têm um direito automático, no oeste, para se aventurarem em público a pé de igualdade com os homens. A maquiagem, como o véu, assegura que elas estão mascaradas e não têm a audácia de se mostrar como cidadãs reais e iguais que seriam em teoria. Maquiagem e véu podem ambos revelar a falta de exercício dos direitos das mulheres." - Beleza e Misoginia, Sheila Jeffreys
Eu quero dizer que mulher tem que se cuidar sim. Mas não desse jeito: isso não é cuidado, é violência. Não proponho que todas nós paremos de nos depilar ou usar maquiagem, mas que passemos a nos cuidar de verdade e não só nos submetermos a essas práticas que são muito mais violentas do que reais cuidados com o corpo.

Cuidar de si mesma é malhar não porque é importante "manter a forma", mas porque malhar libera endorfinas importantes, ajuda com cólicas menstruais e outras questões relacionadas a saúde. Cuidar de si mesma pode ser não malhar, se isso não é algo legal para você.

Proponho que a gente se cuide, hidratando o corpo, por exemplo, não só para ficar com aquele brilho na pele, mas também porque é gostoso se massagear, se sentir. Tirar meia hora para massagear as suas pernas e ir dormir com elas macias contra o cobertor: se curtir de verdade.

Proponho que a gente troque a grana da depilação por uma massagem relaxante. Trocar dor por prazer. Isso me parece muito mais uma mulher se cuidando do que sofrer todo mês porque "o resultado compensa" (já repararam como tudo que é positivo para a mulher costuma ter um preço que é pago em dor?).
Thai

Mulher tem que se cuidar sim: pensar nela, no seu bem-estar além da aparência. Porque não tem nada de errado em querer parecer bonita, dentro dos padrões, mas existe muito de errado em nossas vidas serem quase que inteiramente dedicadas a isso, inclusive servindo como um acessório para conseguir melhorar os outros aspectos (como o profissional ou o amoroso). As pessoas repetem que mulher tem que se cuidar mas não falam em auto-preservação, por exemplo. Em como as mulheres, sendo socializadas para cuidar dos outros, acabam se dedicando muito mais aos outros do que a si mesmas, se sacrificando muito mais do que deveriam.

A verdade é que não ensinam as mulheres a realmente se cuidar: ensinam as mulheres a enfeitar.

Deixo essa reflexão, e proponho às leitoras que se cuidem. Que tirem o dia para ler um livro que te faça chorar tomando um chá (que é só gostoso, sem nenhum "efeito" emagrecedor), que usem um sabonete cheiroso pra se massagear no banho, que guardem o dinheiro da depilação desse mês e gastem em algo que só te traga alegria, e não dor (sério mesmo, que tal um vibrador?). 

Revolução só é possível quando as mulheres estão fortes e empoderadas o suficiente para serem protagonistas. Empoderar-se é se cuidar. 

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