Ano retrasado estreou uma nova série do aclamado produtor Bryan Fuller (Pushing Daisies), e, para a alegria dos fãs do famoso canibal Dr. Hannibal Lecter, a produção seria baseada no livro Dragão Vermelho, de Thomas Harris.
O livro ganhara uma adaptação em 2002, estrelada por Anthony Hopkins e Edward Norton. O que poucos sabem é que Dragão Vermelho é um remake de Manhunt (1986), também baseado na obra de Thomas Harris. Muitos diriam que Lecter já teve seus dias de glória e que, definitivamente, Red Dragon havia sido espremido pela TV e cinema até o fim.
Como estiveram errados! A série, com as brilhantes atuações de Hugh Dancy (Graham) e Mads Mikkelsen (Hannibal), fotografia e filmagem impecáveis, permaneceu no ar e ganhou sua segunda temporada, a contragosto dos mais conservadores e sensibilizados pelas cenas chocantes e temas carregados de terror psicológico. Depois do fim das duas temporadas e assistir, novamente, o filme de 2002, resolvi me dedicar à leitura da obra de Thomas Harris.
No ano passado já havia lido Silêncio dos Inocentes, obra que, cronologicamente, vem depois de Dragão Vermelho e conta com a participação da recruta do FBI Clarice Starling, com quem Lecter desenvolve uma relação de respeito e admiração. Gostei muito do livro, que aborda questões como a discriminação sofrida por Clarice por cer uma das poucas agentes mulheres dentro do FBI. Minha reação com Dragão Vermelho foi de no mínimo decepção.
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Foie Gras feito por Hannival Lecter na série. |
Até a metade da história, nos encontramos enrolados em mil burocracias e pouca emoção em torno do assassino (conhecido como Dentuço ou Tooth Fairy) e a caçada investida por Will Graham. Aposentado do trabalho no FBI, Will está casado e conserta motores de barcos na califórnia, tentando se afastar do mundo do crime. Seu trauma envolve ter descoberto a natureza assassina de Hannibal Lecter, o que lhe custou um enorme corte no ventre e bastante tempo em coma. Dragão Vermelho definitivamente não é um livro para aqueles que querem ver cenas com Lecter: este só aparece cerca de três vezes na história, que foca muito mais em Dolarhyde, o Dentuço, e Will Graham. É traçado um paralelo da loucura e psicopatia do assassino e a grande empatia e envolvimento com o caso de Will Graham, aspecto que foi pouco abordado no filme estrelado por Norton.
Por fim, depois da primeira metade da obra, entramos mais fundo na mente de Dolarhyde e nos deparamos com sua face cruel e problemática, a história de um garoto com o rosto deformado e uma infância abusiva. A clássica cena do confronto entre o jornalista Freddie Lounds e Dolarhyde como o Dragão foi reproduzida exatamente da mesma forma no filme, e, muito provavelmente, é a melhor parte tanto da obra cinematográfica quanto do livro.
Até o momento atual da série não há Dragão Vermelho (na terceira temporada conhecemos não só o Dentuço como também Molly, a esposa de Will), e sim vários assassinos e a amizade destrutiva de Hannibal e Will. Durante a primeira temporada, Will é enganado e manipulado por Lecter, que se aproveita do seu distúrbio de empatia e leva o agente especial à beira da loucura, experienciando alucinações, sonambulismo, perda de memória e lapsos de tempo. Na obra literária, fica claro o caráter manipulativo do Dr. Lecter, que, mesmo depois de preso, insiste em manter contato com Will através de cartas. Will Graham busca entender os assassinos brutais e calculistas com que o FBI tem de lidar: esta é uma tarefa perigosa que explora os limites da mente criativa de Will, tornando-o capaz de mesclar imaginação e realidade. O papel de Hannibal, na série, é permitir que Will faça seu trabalho sem enlouquecer. No entanto, é apenas o expectador quem está ciente da manipulação curiosa de Hannibal, enquanto este recebe a confiança íntegra não só dos membros do FBI, mas também da parte de Will Graham.
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Hannibal cheirando Will. |
Aos poucos, Will fica fora de controle e Hannibal utiliza isso como uma isca, mexendo seus pauzinhos para incriminá-lo por seus delitos de canibalismo. Will é preso e, na segunda temporada, vemos o ódio do protagonista crescer pelo doutor à medida que o isolamento de sua figura influente ganha poder: Will se lembra, aos poucos, as técnicas de manipulação e influência que Lecter utilizara e, oviamente, ninguém acredita nele.
Fica claro que enquanto o livro e filme Dragão Vermelho se dedicam ao caráter criminal da trama, Bryan Fuller abre o leque de possibilidade e trabalha com as entrelinhas, explorando a psicologia e psiquiatria criminal. Muitas vezes, a brutalidade de Lecter fica clara nos filmes a seu respeito, mas pouco é dito sobre sua inteligência aguçada e sua crueldade na manipulação das pessoas a seu redor apenas por diversão.
Fuller parece ter-se inspirado nas cartas de Hannibal a Will na obra literária ao desenvolver o personagem em sua produção para a TV: Hannibal cresce de um homem decadente atrás das grades (porém inteligente) para uma figura influente, elegante e poderosa. Na série, Hannibal se mostra muito mais ameaçador mesmo quando está inocentemente cortando batatas: seu poder não reside no canibalismo, mas sim na sua natureza cruel. Esta é uma informação crucial sobre o personagem que muitas vezes se perde nas outras produções.
Assim, embora Hannibal NBC tenha suas diferenças de roteiro, as similaridades com a obra literária é profunda, e os fãs que conhecem bem o legado de Lecter vão notar como trata-se de uma produção delicada e calculista, com detalhes destinados aos mais aguçados espectadores. Enquanto os filmes se dedicam ao gore e à caçada (Manhunt!), Hannibal NBC explora o difícil de capturar na câmera: a distorção da natureza humana.
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"Nada aqui é vegetariano" |
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