Winona Ryder interpretando Susanna Kaysen no filme de 1999.
Susanna Kaysen poderia ser apenas mais uma garota de 18 anos que não tinha um plano muito concreto para o seu futuro. Mas um dia morrer pareceu uma boa ideia, e ela tomou uma garrafa de vodka com muitas aspirinas.
Situado nos anos 60, o livro Garota Interrompida recebeu uma adaptação cinematográfica estrelada por Winona Ryder e Angelina Jolie. Para quem viu o filme antes de ler a obra, desvincular Susanna e Lisa dessas duas faces ilustres pode ser difícil. (isso não é necessariamente um problema, já que ambas as atrizes foram capazes de capturar as essências das personagens - que são reais - mesmo com as mudanças no roteiro em relação ao livro).
Em 1960, ser louca era fácil. As mulheres desviantes da norma eram hospitalizadas por motivos pequenos, passando, muitas vezes, grande parte de sua vida em hospitais psiquiátricos sem o mínimo de dignidade e tratamento humano. Susanna Kaysen teve a sorte de ser internada num hospital particular, pago por seus pais, o que caracteriza sua história como uma exceção diante dos inúmeros abusos cometidos contra mulheres em tais instituições.
Após a tentativa de suicídio e outros episódios de depressão, auto-mutilação e algo como alucinações, os pais de Susanna a incentivam a passar "algumas semanas" num hospital psiquiátrico. Embora repetindo constantemente aos médicos que seus pais a obrigaram a isso, é ela mesma quem assina os papéis e se interna no hospital, sem dizer não à sua família ou médicos. Sua relutância em admitir que possuia, de fato, um problema, se mescla com a inconsciente vontade de fugir de um mundo de cobranças: ela era a única formanda de sua escola que não iria para a faculdade. Quando arranjaria um emprego bom? Quando arranjaria um marido? Até quando sofreria pressão por ser tida como promíscua? Embora se tratasse de um hospital, o claymoore Hospital torna-se o refúgio de Susanna contra uma realidade com a qual não estava em condições de lidar.
Para analisar a história de Susanna, é preciso entender que suas atitudes auto-destrutivas não partiam de um ódio consciente contra si mesma. A ideia de morrer a perseguia, porque a vida não era interessante o suficiente para permanecer. Susanna descreve em suas memórias que a overdose de aspirina foi uma experiência não de suicídio em si, mas de transformação, de assassinato da fração de si que desejava morrer. Por um tempo, funcionou, mas ela notou que essa experiência não foi suficiente para matar sua parte considerada defeituosa.
Numa passagem interessante, Susanna se dedica a relembrar o tempo que passou com o médico que a interna em claymoore. Ela conclui e argumenta insistentemente para o leitor de que não passaram-se 5 minutos de conversa entre eles para que aquele homem decidisse que ela deveria ser internada num "hospício". O argumento do Dr. é de que passou-se mais de uma hora: Susanna então deixa para o leitor a decisão de acreditar ou não nela. Nesse capítulo, vemos tanto a necessidade da autora em não ser tida como louca, quanto sua própria dúvida sobre sua sanidade. É essa, talvez, a essência de Garota Interrompida.
No hospital, Susanna encontra amizade, talvez, pela primeira vez. Na obra não são mencionados outros amigos ou amigas de Susanna, e ainda assim ela constrói uma relação de apoio mútuo na medida do possível com mulheres que ela considerava um tanto quanto mais loucas do que ela, ao mesmo tempo em que questionava o que é, afinal, ser louca.
Diante das histórias das mulheres no claymoore Hospital, Susanna percebe que, talvez, todos sejam um tanto loucos, mas que aqueles que são internados são os que tornaram-se inconvenientes. Aqueles que estragam as festas dos pais ou que, talvez, comecem a latir para um vendedor. A pessoa que sente vontade de latir e não o faz também é louca?
Diagnosticada com Transtorno de Personalidade Borderline, Susanna não compreende sua própria doença, e demora muito tempo para sequer admitir que possuída um problema. Sua estadia no hospital foi de 18 meses, e foi depois de todo esse tempo que Susanna entendeu a loucura ou o que diziam ser: ela era uma garota de 18 anos que pensava demais, que duvidava da realidade e que fazia o que queria fazer. Talvez ela devesse ter algum tipo de freio mental que a impedisse de engolir um vidro inteiro de aspirinas, mas, para a autora, é essa a raiz do seu problema (e de todas as pessoas loucas): "Loucura é você amplificado."
O ambiente do hospital retirava das mulheres direitos básicos, como dormir ou depilar as pernas sem ser observada: ali era sua transição, ou, como Susanna descreve, "eles nos desvestiam até os ossos". A vulnerabilidade de estar num ambiente monitorado era considerada, pelos profissionais, uma pausa entre o mundo real do paciente doente e o mundo real do paciente são. Talvez fosse este o conforto que fez com que Susanna permanecesse em claymoore por tanto tempo, até ser capaz de entender a si mesma. A estranha liberdade de apenas ser. Até mesmo pequenas noções do espaço eram difíceis para que Susanna lidasse, como opostos: preto e branco, frio e quente. Decisões com as quais ela teria de lidar e que se tornavam monstros sob sua cama, mas que desapareciam sob a perspectiva de um local neutro e livre de pressões sociais.
Susanna deixa claro que sua recuperação não partiu dos médicos que a diagnosticaram e sim do que o paciente é capaz de fazer a partir desse diagnóstico e como seu corpo e mente são capazes de trabalhar com esse parecer.
A adaptação cinematográfica passa longe de descrever a jornada de Susanna no hospital. Aos poucos, o filme se torna muito sobre a visão de Susanna em relação a Lisa, e as duas fogem juntas - um evento que não acontece na história real de Susanna. O Hospital, para a Susanna verdadeira, era um refúgio do qual ela só saiu definitivamente quando estava pronta.
Garota Interrompida é um livro que deve ser lido com a atenção de que trata-se de um memoir, ou seja, as memórias de uma garota de 18 anos que passou dois anos internada num hospital psiquiátrico. A visão da paciente, de louca, de artista e escritora se intercalam numa narração crua e sem rodeios sobre coisas feias que se escondem em celas solitárias: suicídio, auto-mutilação e a dor da dúvida.
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