segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Resenha: Candy, de Luke Davies



Alguns livros nos tocam de maneira real e dolorida. Outros são como passar por uma cidade, de carro, e não parar para ver nada de perto. Alguns livros são tão viscerais que você o vivencia como se tivesse entrado numa cidade, bairro ou casa e tocasse cada elemento presente ali: sentisse seu cheiro e textura. Candy é um deles.

Este é um livro sobre amor e vício, e como essas duas coisas se aproximam. Dan (na verdade, o nome do narrador não é dito, o que nos remete ao passado do autor Luke Davies, que também passou anos dentro do vício em heroína. Peguei emprestado o nome que a adaptação cinematográfica dá ao protagonista) conhece Candy e se apaixona rápido: é uma história bem clássica. Um viciado em heroína e uma garota muito linda que breve também iria injetar a droga em suas veias. Livros e filmes sobre drogas costumam seguir um padrão triste envolvendo abstinência, risco de vida e prostituição. Candy não é diferente disso, mas perpassa muito do universo que existe dentro das pessoas, e é isso que torna esta história tão especial.

Depois de morarem juntos, Dan e Candy têm uma história de amor baseada em heroína: acordar, usar, conseguir dinheiro para a próxima dose antes de começarem as horríveis dores e o suór pegajoso da abstinência. O dinheiro dos pais de Candy não é suficiente para manter uma casa e o vício de duas pessoas. Logo ela começa a se prostituir e Dan continua com os ocasionais golpes e roubos de carteira. O problema é que quanto mais dinheiro se tem, mais dinheiro se gasta em drogas, e consequentemente mais eles usam. O casal não conseguia ter muitos bens em casa por algum tempo. Todos os itens eram vendidos por heroína. A base do relacionamento eram as horas cheias do calor que a droga proporciona, planos de viagens, ambos limpos, sem aquela substância entupindo suas veias, um bebê, uma família e casa de verdade.

Este é um livro dividido em capítulos sobre decadência lenta que o destino reserva aos dois. Como o próprio Dan, como narrador descreve, haviam os bons momentos e os momentos ruins. Os bons momentos eram o sexo, as cores do mundo muitos vivas e douradas, banhadas em heroína e cigarros. Os ruins eram a abstinência, as brigas, Candy se prostituindo. Doença, dor, fracasso. Como também diz Dan, heroína atrai problemas.

Muitos dos eventos narrados por Dan me surpreenderam: eu já esperava, ao começar um livro sobre vício em heroína, que leria sobre tentativas fracassadas de abandonar a droga, prostituição e tristeza. Não imaginava ler que Dan não conseguiria mais encontrar veias nos braços, mãos, pernas ou pés. Ou que Candy se aproveitaria das tendências suicidas de um homem aleatório para extorquir dinheiro dele. Ou que masturbação ajudaria a aliviar os sintomas de abstinência. Nós sempre imaginamos pior do que realmente é, e ainda assim, esta é uma história que me chocou.

Durante a leitura, eu me sentia submersa. Era como se eu estivesse dentro de Dan, experimentando o mundo sob a visão de alguém que não está realmente em contato com ele. O mundo deste casal não é o nosso, é o deles. Candy e Dan contra o mundo, numa redoma de vidro, dentro de uma seringa. 

Ainda assim, cada um deles vivencia o vício de maneira diferente. Candy muitas vezes pergunta a Dan se ele não vê o que aquela vida estava fazendo com ela e minha impressão foi de que ele nunca entendeu. Mais para o final da história, percebemos que Dan não conseque vivenciar o mundo, ou os outros, inclusive Candy, sob a heroína. O vício, para ele, era desligar o mundo como ele realmente é.

É uma leitura poética e que não se arrasta em momento algum. Os personagens são jovens e divertidos, e as situações, quando não são terrivelmente trágicas, são até engraçadas (destaque especial para o capítulo em que Candy e Dan ficam infestados de piolhos). Alguns capítulos, apresentados em itálico são absolutamente introspectivos e pouco narrativos da vida do casal. Estes foram os meus preferidos, porque traziam uma verdade difícil sobre quem Dan era sob efeito da heroína e como as coisas doíam de maneira bonita.

Eventualmente eles começam o tratamento com methadone, uma substância que retira os efeitos da abstinência e facilita o fim do vício. Ambos começam a perceber como estavam tristes, como tudo era vazio, como o amor talvez não fosse suficiente. Como falei, a heroína os deixava submersos: emergir do vício significava emergir para o ser que eles realmente eram e isso era cutucar a seringa. As conversas entre os dois começaram a revelar muita dor e ressentimento. Fazer planos não era mais um combustível para esperança: com heroína, tudo parecia possível. Sem a droga, viajar, ter filhos, uma casa e felicidade pareciam distantes demais.

O livro termina com um um prólogo que na verdade é um flashback para a primeira vez que Candy injetou heroína, e então entendemos como os dois se uniram. É o tipo de coisa que você deve ler para entender e sentir, então não vou contar.

Assisti o filme de 2006 antes de ler o livro e me arrependo. Sinto que ambas as experiências teriam sido mais intensas para mim se tivesse tido contato com o livro antes, mesmo que o longa tenha tido participação do autor. É uma ótima adaptação, mas não vai tão fundo nos personagens como a escrita vai: acho que neste caso, nem toda a poesia desta história pôde ser passada para a sétima arte.

Dan é interpretado por Heath Ledger e Candy por Abbie Cornish, ótimas escolhas. Luke Davies escreveu também para o filme e a direção é de Neil Armfield. O resultado é incrível e recomendo o filme para qualquer um que aguente dor.

“I am so far removed, from everything, that I can’t even cry. There’s a chasm between me, where I am, and the world I am in. The world I move my feet through. The atmosphere I breathe is like golden syrup, twenty-seven atmospheres thick. I’m wading through the world, consumed with … consumed. And I’m wading through the swamp that my body has become.”

“Eu estou tão distante, de tudo, que eu não consigo nem chorar. Existe um abismo entre eu, onde estou, e o mundo onde estou. O mundo pelo qual movo meus pés. A atmosfera que respiro é como seiva dourada, vinte e sete atmosferas de espessura. Eu estou vagando pelo mundo, cosumido por... consumido. E eu estou vagando pelo pântano que meu corpo se tornou.”


quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

John e Shilloh: barreiras de gênero




Se você achava que seria a Kim Kardashian quem quebraria a internet, se enganou: toda vez que a filha de Angelina Jolie aparece nas câmeras, é todo um rebuliço. 

O motivo é simples: trata-se de uma menina que não gosta de se vestir da forma convencional para meninas e que, de algum tempo pra cá, prefere ser chamada de John. Antes de mais nada, é incrível ver a compreensão e apoio de Angelina e Brad a como a criança quer se vestir ou ser chamada. Esse deve ser um exemplo para os pais mundo afora, inclusive conhecidos meus, que agridem uma criança de apenas dois anos por gostar de batom. 

O que a posição da criança e dos pais para o mundo e o choque da sociedade nos diz é que as barreiras de gênero vão muito bem, obrigada. Tão bem que pessoas de fora da família já decidiram que a criança é trans (ou seja, foi designada como menina ao nascer, por ter vagina, mas se identifica como homem), algo que com certeza não é definido por um nome e umas peças de roupa, em especial quando se é tão jovem. Mas não é esse meu questionamento: trata-se de uma questão pessoal de John, ou Shilloh, ou o nome que a criança preferir. Trata-se de uma decisão a ser tomada por ela quando o mundo a sua volta fizer realmente sentido. 

Antes de qualquer coisa, é importante voltar à princípios básicos do feminismo, que infelizmente a gente se esquece fácil: 

Existe uma divisão entre homens e mulheres em sociedades patriarcais. Essa divisão não só separa um do outro, como coloca os homens em cima. Nós somos suas subordinadas, esposas, mães cuidadoras: lavamos suas roupas, cuidamos de seus filhos, limpamos sua casa. O problema não está em lavar, limpar e cuidar, mas sim fazer isso para homens sem sequer haver reconhecimento. Sem falar na limitação: seu lugar é um vestido rosa lavando a louça ou numa área de trabalho "feminina" como a medicina ou educação. Você tem que ser linda, mas não demais. Você tem que ser muitas, muitas coisas mesmo, em especial no que diz respeito a sua aparência e sexualidade. Quando se é mulher, você tem um lugar muito limitado para ocupar no mundo. 

Punk rock não é coisa de mulher, nem calça militar, nem cabelo curto, nem esse cachorrão

E é aí que entra a controvérsia da filha da Angelina Jolie. É uma criança que nasceu menina, que tem não só a família e a sociedade esperando um papel de menina dela: existem holofotes que esperam que ela apareça em público de vestido rosa ou fazendo o estilo "mini-adulta" que tem surgido por aí. Ao invés disso, a criança aparece de terno. 

Provavelmente a maior vantagem dos ternos são os bolsos.


E mulher não pode usar terno? 
Janis Ian já estava quebrando esse estereótipo no Meninas Malvadas, em 2004: 

Me possua, Janis.

Pra muita gente, ser homem ou mulher tem a ver com a roupa que você usa ou os objetos que gosta de ter por perto. Por isso se assustam quando veem uma criança menina brincando de carrinho ou correndo sem camisa na rua. Se assustam ainda mais quando é um menino se divertindo com bonecas ou querendo passar maquiagem: às mulheres, o cuidado, aos homens, explorar o mundo. 

A reação da mídia e dos fãs à roupa e escolha de nome de Shilloh choca porque, ao mesmo tempo em que associam ser mulher à vagina, também associam a várias coisas: vestidomaquiagemcuidadorosaboneca. Já a reação de alguns núcleos feministas à uma criança que escolheu um novo nome e usa terno é algo que ME choca. Surgiram muitos dedos apontados para a criança, dizendo que ela é trans! Shilloh tem 8 anos. 

Tudo o que Shilloh fez foi adotar um estilo que a agradava, por n motivos que ela mesma deve saber. Mais agradável aos olhos? Mais confortável? Vontade de ficar vestida igual a um homem específico? Nós não vamos saber tão cedo.

Dizer que Shilloh é trans por isso é dizer que ser mulher é usar vestido e ser homem é usar calças. E nós estamos em 2014, anos e anos depois da primeira onda feminista.

Como é fácil esquecer tudo que aprendemos lá atrás! Como é fácil esquecer o quanto lutamos pelo direito de sermos mulheres e podermos fazer o que quisermos, vestirmos a roupa que quisermos sem sermos rotuladas por isso. Shilloh é uma garota que já recebeu vários rótulos: trans, tomboy, lésbica, machinho. Não evoluímos nada, pelo visto. Era para Shilloh ser só mais uma garota sendo ela mesma, explorando diferentes estilos e tendo uma infância legal. 

Quanto a ela preferir ser chamada de John, eu não pularia diretamente para a conclusão de que se trata de uma criança transexual. Eu penso que Shilloh é uma garota tão inteligente que já notou que John pode ser quem ela quer ser, enquanto Shilloh tem expectativas de menina. 

Ela já percebeu que como John, ela pode ser quem ela quer, e como Shilloh não. É uma lógica simples e que uma criança poderia fazer. Se ser menina é ter que usar vestido e fazer coisas que ela não quer, então agora é John, que pode fazer isso tudo sem ser julgado.

Eu não acho isso saudável. Acho sintomático, e acho que a barreira de gênero, hoje em dia, está fortíssima. Nós mulheres não podemos apenas ser, despreocupadamente, nós mesmas. Nos deram mais um monte de moldes para seguir.

Meu objetivo não é estipular se a criança é ou não trans, ou as políticas envolvidas nisso. Meu objetivo deveria ser claro a todas as feministas: definir uma criança como homem ou mulher com base no que ela gosta de vestir e brincar é machismo puro. É um retrocesso em décadas de luta feminista pela libertação das mulheres dos papéis que nos foram impostos. É afirmar que, sim, Amélia que era mulher de verdade, que fazia tudo em casa e ainda estava lindíssima para o marido. É afirmar que ser mulher é um papel muito bem definido.

Edit (20/12):
Uma amiga me apontou coisas importantíssimas, então segue a fala dela:

"O Brad Pitt falou em entrevista que ela, na época com 2 anos (!!), queria ser chamada de John ou Peter por causa do Peter Pan. Não era a identidade de gênero dela. http://goo.gl/q2Sjtd
Aí nessa reportagem tem tbm uma fala da Jolie falando que a pira dela é ser que nem os irmãos e boa, nada pra ficar sendo interpretado.
Aí com 6 anos ela queria ser chamada de Ben e depois de Shax (pra combinar com os nomes dos irmãos) http://goo.gl/W19SLc
Enfim, em 2010 a Jolie já tava pedindo pra não julgar a Shiloh pelas roupas masculinas (http://goo.gl/HrR475)."

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Resenha: Gone Girl





De início esse não foi de longe um filme que me interessou, mesmo com a direção de David Fincher. A premissa não me prendia, e a ideia de um homem que procura pela esposa desaparecida me parecia demais como um longa da Tela Quente para que eu me dedicasse a assistir. O livro então, era completamente ignorado por mim nas prateleiras da livraria.

Depois de subestimar Gone Girl o suficiente para não pegar uma sessão no cinema, assisti às duas horas e 26 minutos do filme com o namorado, e posso dizer que definitivamente foi uma das melhores obras do ano. 

Ben Affleck (sim, eca) interpreta o marido cuja esposa sumiu, Nick. O filme já começa com o sujeito indo tomar umas com a irmã, reclamando da esposa e do aniversário de cinco anos do casamento. Ele é, claramente, um homem infeliz, mas o espectador não sabe porque. Somos introduzidos à história de Nick e Amy, que viveram anos de um romance ardente e feliz, até que o casamento, com falta de palavras melhores, perdeu a graça. 

Nick volta para casa e não encontra sua esposa, mas uma mesa quebrada. Depois de acionar a polícia, fica evidente que Amy não simplesmente saiu: houve uma luta e ela, pelo visto, perdeu. 

Amy é querida e famosa - trata-se do desaparecimento de uma celebridade milionária. Protagonista da série de livros infantis "Amazing Amy", criada por seus pais, ela tornou-se a personagem: exemplar. A reflexão da queridinha da américa, loira, linda, de voz sensual e fotogênica. Assim como o casamento.

Até aí, o filme poderia ser mais um dos clássicos da Globo na segunda-feira à noite. No entanto, vamos descobrindo alguns podres no casamento e em Nick, o que nos leva a pensar se esse cara realmente quer encontrar a esposa. Ou se, na verdade, ele a matou e está apenas bancando o bonzinho. 

Este é um filme cheio de reviravoltas e, honestamente, se não fosse a direção de Fincher, ele seria um desastre. Ben Affleck é sofrível, com um personagem morno que rapidamente aprendemos a detestar. Era uma direção difícil, com um roteiro complicadíssimo e que tinha tudo para dar errado. O spoiler é: não deu.

A partir daqui vou falar sobre o principal spoiler do filme, então fique avisado:

Eis que a garota exemplar não é tão exemplar assim: depois de deixar um diário estrategicamente escondido para a polícia encontrar, Amy começa sua fuga e forja seu desaparecimento. No diário, Amy descreve diversas brigas, uma agressão física da parte de Nick e o medo de ser assassinada por ele - tudo mentira. O motivo é a distância de Nick, causada, em especial, pelo caso que ele está vivendo com uma de suas alunas, de apenas 20 anos. Uma cena clássica de final de filme se segue: a atriz Rosamund Pike dirige satisfeita para longe de tudo, saboreando a vingança planejada contra seu marido, cabelos ao vento, óculos de sol.

Muitas vezes, durante esse longa, me lembrei de Um Crime de Mestre (Fracture, 2007), estrelado pelo meu querido Anthony Hopkins. Um crime que não pode ser provado, a vingança de um dos cônjuges, o suspense... exceto que em Gone Girl a esposa está vivíssima e louca para se vingar. 

Amy descobre que fugir e mudar de identidade não é tão simples e, depois de ter seu dinheiro roubado, pede ajuda a um antigo namorado que jamais a esqueceu. Mantendo a imagem de esposa agredida e apavorada, Amy é levada até a casa no lago do sujeito, interpretado por Neil Patrick Harris. Coberta de luxos, Amy assiste um programa de tv em que Nick, auxiliado por um advogado, limpa a recém-adquirida fama de assassino. Ele pode ter traído e desrespeitado a esposa, mas não a matou. Ele a ama e a quer de volta. Sente sua falta. Obviamente, Amy fica abalada pela situação.

O filme traz um peso midiático muito grande: como Amy é uma celebridade, diversos programas e canais da tv fazem a cobertura do seu desaparecimento. Um deles é um talk show sensacionalista, que afirma que Nick é um assassino, mesmo sem provas, e que ele e a irmã têm uma relação incestuosa. A influência da mídia no caso é notório, em especial mais para o final do filme, em que os personagens são, literalmente, atores para a mídia. 

Uma outra sensação que tive enquanto assistia é que Gone Girl tem um quê de american way of life: o casal perfeito, cheio de aparências, quebrado por dentro. Todo o peso de serem famosos e estarem juntos e a torcida por um final feliz por parte da mídia e das pessoas acompanhando o caso revela que, para o EUA contemporâneo, bom mesmo é um grande show de família feliz. 

A partir daqui já é spoiler demais e todo mundo já entendeu que esta não é uma clássica história "boy meets girl" e sim babaca encontra obssessiva.

Dos destaques desse longa, o maior deles é a atuação de Rosamund Pike, interpretando a mesma personagem e suas duas faces com tanta naturalidade que assusta.

 

Depois disso, ficam meus aplausos empolgadíssimos a David Fincher (estou aqui na torcida ferrenha para que o Oscar de Melhor Diretor seja dele). Depois de assistir Gone Girl e eu só conseguia pensar em como esta história complexa poderia ser contada de forma chata, longa, confusa, melosa ou dramática demais. A naturalidade e simplicidade com a qual ela se desenrola é incrível. 

E mais aplausos a Trent Reznor, que produziu a trilha sonora. Aqueles batimentos cardíacos me deram ansiedade na hora certa.

Agora meus tradicionais comentários sobre a moral da história, representatividade e todo o resto. A parte que talvez os maiores cinéfilos não tenham interesse: 

Esta é uma história sobre uma mulher psicopata e inteligentíssima que se vinga de um homem covarde e infiel. Um cara nada bonzinho, mas que definitivamente acaba sendo vítima da esposa. 

Gosto bastante de uma cena em que Nick diz que está cansado de mulheres enchendo o saco dele. Bom, amigo, como falo a todos os homens, se não quer mulher enchendo seu saco, não faça por merecer.

Amy finge ter sido agredida, estuprada e até uma gravidez falsa ela conseguiu inventar. Infelizmente vivemos num mundo em que não precisamos de mais histórias de mulheres que mentem para ferrar a vida de homens, já que é exatamente isso que alegam quando uma mulher relata ou denunciam estupro, abuso ou agressão na vida real. Gone Girl perde muitos pontos nisso, para mim. Ainda assim é uma história incrível. 

E há vários momentos em que Amy fala grandes verdades:
"Garota Legal. Homens sempre usam essa, não usam, como o elogio definitivo? Ela é uma garota legal. A Garota Legal é gostosa, Garota Legal é jogo, Garota Legal é divertida, Garota Legal nunca fica com raiva do seu homem, ela apenas sorri de um jeito tímido e amoroso, e então apresenta sua boca para trepar. Ela gosta do que ele gosta, então obviamente ele é um hipster que gosta de vinil e mangá fetichista. Se ele gosta de Girls Gone Wild ela é uma garota de shopping que fala de futebol americano e tolera asinhas de frango na Hooters. Quando conheci Nick Dunne eu sabia que ele queria Garota Legal, e para ele, eu admito, eu estava disposta a tentar. Eu depilei minha buceta. Eu bebi cerveja assistindo filmes do Adam Sandler. Eu comi pizza gelada e continuei sendo tamanho 36. Eu o chupei, semi-regularmente. Eu vivi o momento. Eu era a porra de um jogo. Não posso dizer que eu não gostei um pouco. Nick provocava coisas em mim que eu não sabia existirem. Uma leveza. Um humor. Uma facilidade. Mas eu o fiz mais inteligente, perspicaz. Eu o inspirei para subir ao meu nível. Eu forjei o homem dos meus sonhos. Nós estávamos felizes fingindo ser outras pessoas. Nós éramos o casal mais feliz que conhecíamos; e qual o ponto de estar juntos se não éramos os mais felizes? Mas Nick ficou preguiçoso. Ele se transformou em alguém com quem não concordei me casar. Ele realmente esperou que eu o amasse incondicionalmente. E então ele me arrastou, sem dinheiro, para o umbigo desse grande país, e se descobriu uma nova Garota Legal mais jovem, mais flexível. Você acha que eu deixaria ele me destruir e acabar mais feliz do que nunca? Nem fodendo. Ele não vai vencer. Meu fofo, charmoso, homem de Missouri. Ele precisava aprender. Adultos trabalham por coisas. Adultos pagam. Adultos sofrem consequências."


Justifica incrimar o marido por um crime que ele não cometeu? Não, mas fala por todas nós e o fato de estarmos cansadas de tanta coisa ruim cair nos ombros de nós mulheres e nada acontecer com os responsáveis. é um filme que traz uma mensagem (infelizmente, acho que ela vai se perder no tempo), que é de como as mulheres se diminuem para tornar seus homens melhores.

No fim das contas, Gone Girl é um filme que prende e conta uma história diferente das que vemos por aí hoje em dia. Pra quem carrega um tiquinho de misandria, é delicioso torcer pela Amy e seu plano de vingança. Pra quem quer só um suspense, é com certeza o melhor lançamento do ano.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A liberdade do Professor

Homem que engana, manipula e assedia mulher: não importa se é de esquerda. Não é meu companheiro de luta.


(TW: heterossexualismo, piv, sexo hétero, prostituição)

Se você não sabe do que se trata esse post, leia aqui e aqui primeiro.

Eu convivo com muitos homens "feministas". Eu vou descobrindo, aos poucos, que eles não são tão legais assim. Não que eles pisem na bola de vez em quando: eles pisam sempre. Sempre chega algo no meu ouvido: "fulano gosta de novinha", "fulano forçou a barra com fulana", "fulano traía fulana", "fulano obriga fulana a aceitar relacionamento aberto".

Por muito tempo eu me esforcei absurdamente pra desconstruir monogamia. Me sentia culpada de sentir ciúmes, de estar num relacionamento fechado, de não ser livre o suficiente. Eu entrei num grupo chamado "Rli Belo Horizonte".

Um dia, um cara já famoso por ser escroto com mulheres, postou uma imagem com os seguintes dizeres:
"Com tanta coisa pra dar, você vai dar uma de difícil?"

E aí começou minha desconfiança de que não havia segurança num ambiente em que eu não poderia dar uma de difícil, já que tenho vagina e ânus pra dar. Com dois buracos pra dar, por que eu daria uma de difícil? Haha.

Na medida em que o "poli", como o I****** fala, se constrói, a amiguinha responsabilidade fica pra trás. E o respeito também. E o bom senso. A gente começa a esquecer que as pessoas com quem nos relacionamos (em especial mulheres) são humanas.

Libertação sexual na esquerda tem significado as mulheres abrirem as pernas pra qualquer um (falo qualquer um porque a libertação sexual das bissexuais e lésbicas ficou pra trás e esquecida em meio à fetichização e lesbofobia). E isso ser considerado muito bonito, libertador, e ai de quem achar feio que é moralista.

O problema é que enquanto as mulheres acham que estão se divertindo, se libertando, as vezes, de um relacionamento já abusivo com o marido/namorado atual etc, os homens as exploram.
Eu já vi homens falarem que fazem questão de namorar feministas. Por que? Nós somos mais tolerantes? Acho que não. Nós somos é mais livres, mais mente-aberta, queremos nos libertar dessa cultura que fala que fazer sexo anal é rebaixar a mulher (novos estereótipos feministas: de lésbicas peludas à mulheres que dão o cu e fazem suruba. Sinto saudades do primeiro). E aí você luta pra não ser chamada de puta na rua, mas tem um cara que está transando com você te chamando de puta pra "te excitar". E você se excita, porque a puta é livre, né? Não. Porque o cliente da puta a explora, e esses homens exploram mulheres também. Não é só uma palavra quando o cara realmente te trata como uma, te explora como uma, te manipula como uma. Não é só uma palavra quando ele te domina.

Essa discussão importa porque hoje em dia (eu tenho 20 anos e já estou sendo obrigada a usar essa expressão) um homem que: mantém inúmeros casos com mulheres casadas, as prefere porque assim não precisa assumir responsabilidades; as coloca em situação de risco com homens violentos; engana a parceira atual; etc, é visto como apenas um homem heterossexual flertando e desconstruindo monogamia.

E se você é uma mulher formada, inteligente, feminista, casada, e caiu na teia de manipulação desse cara, bom, a culpa é sua, né? Você que estava tentando se libertar. Se achou ruim, por que não pulou fora?

Bom, quando você passa tanto tempo sendo ensinada que transar com um cara que te trata feito lixo e fala que pode meter em você de tal a tal hora é ser livre e subversiva, você passa a acreditar. Quando você percebe que gosta do cara e que se não transar com ele, outras vão, você acaba indo, porque ganhar migalhas é melhor que nada quando se é mulher. É assim que a gente aprende. E aí o que era pra ser uma libertação sexual se torna sua cruz e quando você assusta, você está apaixonada por um cara que não te assume, te trata mal, te vê como objeto "puta", e se você não der pra ele, você sabe que vão ter outras pra ele comer. Porque ele faz questão de te falar. Afinal, ele é poli. É um cara disputado.

O caso do I****** não é o primeiro, nem o último. Esse padrão de manipular e enganar mulheres usando amor livre/poli/rli como escudo é tática antiga. Ele começou com isso em 2005. Até hoje chegam mulheres me contando que foram manipuladas por homens que consideram liberdade poder mexer com a cabeça de uma mulher o quanto quiser, transar com ela e ter zero responsabilidade quando a casa cai, ou em qualquer momento.

O que eu quero dizer é: é ok dizer "não". Pra não monogamia, pra qualquer tipo de sexo, pra sexo em si, pra relacionamentos que não são sérios. É ok querer ser tratada bem. É ok achar que sua liberdade não envolve esse tipo de situação, e eu espero que as mulheres lendo isso não percam o tempo que perdi me machucando e me culpando porque eu não queria ter um relacionamento "livre". Mal sabia eu que o choro que eu tinha, achando que estava sendo possessiva, egoísta, blablabla, amor sem posse, sem poder, etc, era uma própria gaiola feita de culpa.

Se liberdade for significar ser tratada "como puta", eu passo. Eu não sou puta, e nenhuma de vocês é.